Meninas são muito espertas pra cair de seus carrinhos: Sobre dor de garganta, Peter Pan e outras brisas

Nunca tive pressa pra crescer e se você já leu outros textos meus, deve ter percebido isso. Como uma grande fã de Peter Pan, alimentei por muito tempo a fantasia de que algo mágico aconteceria antes da vida adulta me bater porque sim, a única certeza que eu tinha do futuro era de que eu iria apanhar. 

O mais doido de tudo isso é que a real consciência de que virei adulta, bateu cerca de duas semanas atrás, quando comecei a ter crise de garganta e chorei porque minha mãe está em outro país. Chorei pela presença pesada que a falta tem, chorei porque tinha roupa na máquina, chorei por queimar de febre sozinha durante a madrugada, chorei porque me vi preparando pela primeira vez o meu próprio mingau de cachorro depois de passar a noite cuidando de mim. Quem disse que adulto não chora certamente não chegou a ser adulto.

Pra quem não sabe, mingau de cachorro é uma das maiores provas de amor que uma ancestral vai poder te dar e tem a medida certa da cura. Lembro que todas as vezes em que fiquei com sintomas de resfriado, uma mulher da minha família me dava esse mingau de farinha de mandioca como uma espécie de ritual: Sempre em jejum, de preferência ainda na cama, nunca depois de pegar a primeira brisa da manhã, tem que beber tudo pra fazer efeito. Alho, água, amor. O gosto é esquisito mesmo, como todo processo de cura é. Mas junto com o amargor da trajetória de tomar esse remédio por três dias seguidos, tinha também a certeza de que quando o tempo passasse, eu estaria feito nova. Curada.

Acontece que dessa vez, pela primeira vez, eu precisei me curar sozinha daqui desse novo continente. Precisei sentir dor, medo, solidão, saudade, tudo na única companhia que tinha, que era eu mesma. Nesse processo, me perguntei se aquilo funcionaria, já que não tinha alguém que fizesse por mim e, foi aí que entendi que a nenhuma mulher adulta é realmente permitido ficar doente.

Desde que o mundo é mundo, temos sempre que estar cuidando de alguém ou de alguma coisa. Não me lembro de ter visto minha mãe ou minhas tias ficando doentes muitas vezes, mas nos poucos momentos em que isso aconteceu, eu nunca as vi parar. Nas últimas semanas, sem nenhuma delas aqui comigo, percebi com o gosto amargo da cura na boca, que a mim e a tantas mulheres à minha volta, também já não é permitido faz um tempo. Percebi que enquanto em outras épocas, ficar doente era sinônimo de descanso, conforto e cuidado, ali se tornou sinônimo de ansiedade por saber que não conseguiria, definitivamente, dar conta de tudo. Adultecer é a doença do “ASAP”

Não é permitido a uma mulher ficar doente, simplesmente porque é esperado de nós, que estejamos sempre em movimento, sempre dispostas a servir aos outros em primeiro lugar e às nossas próprias necessidades apenas se der. Talvez a ficha por essa perspectiva tenha caído um pouco tarde, talvez eu seja realmente doida como já tive que ouvir da boca de alguns, mas é impressão minha, ou virar adulta é estar cansada o tempo todo por ter que dar conta de fazer os outros descansarem?

Se o nosso corpo fala, esse aqui está gritando. Parte de ser adulta é também reconhecer uma indignação legítima sem culpa, é se permitir parar. Mas parar de verdade, não mentir pra nós mesmas enquanto pensamos se esquecemos de apertar o botão da máquina de lavar. Não deixe que apertem sua mente, o resto pode ficar pra depois se o antes for você.

Aquela madrugada me fez pensar em quem sempre cuidou de mim sem pedir nada em troca. Me fez pensar no pedacinho de goiabada no mingau pra ele ficar menos intragável. Na caixa de Sonho de Valsa, nos beijinhos pra curar, nas cantorias, nos abarás, no cuscuz de carimã aos domingos. Me fez pensar também que precisamos nos permitir adoecer, nos permitir descansar independente do quanto o mundo diga que não deveríamos. De preferência nunca nos curvar à negligência.

Isso tudo me ensinou que fazer uma receita de mingau de cachorro é solitário, porque isso significa que quando não queria me cuidar sozinha, eu precisei me cuidar de qualquer jeito e é assim que a vida é. Cá entre nós, o que de fato tem de mal em nos dar o nosso tempo? Precisamos nos cuidar quando nascemos sós.

Sigo sobrevivendo ao caos que é aprender enquanto se vive que no fim das contas adultos não passam de crianças grandes tentando se salvar. Em Peter Pan vimos desde cedo que “meninas são muito espertas pra cair de seus carrinhos”, por isso não tem meninas perdidas na Terra do Nunca. O que estamos aprendendo agora, é que é justamente por sermos tão espertas, que precisamos salvar a nós mesmas antes de salvar o mundo.

Quem escreve

Sou modelo, faço arte, escrevo textos e bato papo aleatório nas redes sociais.

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